Aos 95 anos, morre Nelson Mandela, um gigante do século XX, um líder raro e exemplar
Nelson Mandela, o libertador da África do Sul: um gigante do século XX, um estadista de verdade numa época de anões políticos
Com a fisionomia abatida e a voz algo trêmula pela emoção, o
presidente da África do Sul, Jakob Zuma, acaba de anunciar a morte, aos
95 anos, de Nelson Mandela — um estadista de verdade em uma época de
anões políticos, um dos estadistas gigantes do século XX, Prêmio Nobel
da Paz e o homem que trouxe a paz e a democracia para este grande país
governado até 1994 por uma ditadura racista da minoria branca.
Diante dessa perda, que torna o mundo mais pobre, compartilho com
os leitores um texto a respeito deste grande homem escrito em julho
passado por alguém com muito mais talento do que eu — o jornalista e
escritor peruano Mario Vargas Llosa, Prêmio Nobel de Literatura de 2010.
Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo
ELOGIOS A MANDELA
Nelson Mandela, o político mais admirável destes tempos tumultuados,
segue em um hospital de Pretória, após completar 95 anos na
quinta-feira, 18 de julho.
Poderemos ter a certeza de que todos os elogios feitos a ele são
justos, pois o estadista sul-africano transformou a história do seu país
de uma maneira que ninguém imaginava concebível, e demonstrou com sua
inteligência, habilidade, honestidade e coragem que, no campo da
política, às vezes, os milagres são possíveis.
Tudo isso foi sendo gestado, antes mesmo que na história, na solidão
de uma consciência, na desolada prisão de Robben Island, onde Mandela
ingressou, em 1964, para cumprir pena de prisão perpétua e trabalhos
forçados.
As condições em que o regime do apartheid mantinha seus presos
políticos na ilha rodeada de um mar traiçoeiro e tubarões, em frente à
Cidade do Cabo, eram atrozes.
Uma cela tão minúscula que parecia um nicho ou o covil de uma fera,
uma esteira de palha, uma sopa de milho três vezes ao dia, mudez
obrigatória, visitas de meia hora de duração a cada seis meses, e o
direito de receber e escrever somente duas cartas ao ano, nas quais
jamais deveriam ser mencionados temas políticos nem da atualidade.
A cela minúscula na prisão da ilha de Robben onde Mandela passou 27 anos
– nove deles em total isolamento, ascetismo e solidão (Foto:
cmisouthafrica.com)
Em tal isolamento, ascetismo e solidão transcorreram os primeiros nove anos dos 27 que Mandela passou na ilha.
Em vez de suicidar-se ou enlouquecer, como muitos companheiros de
prisão, nos nove anos Mandela meditou, reviu suas próprias ideias e
ideais, fez uma autocrítica radical de suas convicções e atingiu aquela
serenidade e sabedoria que a partir de então guiariam todas as suas
iniciativas políticas.
Embora nunca tenha compartilhado das teses dos resistentes que
propunham uma “África para os africanos” e queriam atirar ao mar todos
os brancos da União Sul Africana, em seu partido, o Congresso Nacional
Africano, Mandela, assim como Sisulu e Tambo, os dirigentes mais
moderados, estavam convencidos de que o regime racista e totalitário só
seria derrotado mediante ações armadas, sabotagens e outras formas de
violência, e para tanto formou um grupo de comandos ativistas chamado
Umkhonto we Sizwe, que enviava para Cuba, à China Popular, à Coreia do
Norte e à Alemanha Oriental jovens militantes para que se adestrassem.
Deve ter levado muito tempo – meses, anos – para convencer-se de que
toda essa concepção da luta contra a opressão e o racismo na África do
Sul era equivocada e ineficaz, e era preciso renunciar à violência e
optar por métodos pacíficos, ou seja, buscar uma negociação com os
dirigentes da minoria branca – equivalente a cerca de 12% do país, que
explorava e discriminava de maneira iníqua os 88% restantes – e
convencê-la de que permanecera no país porque a convivência entre as
duas comunidades era possível e necessária, quando a África do Sul fosse
uma democracia governada pela maioria negra.
Prisioneiros submetidos a trabalhos forçados quebram pedras no pátio da
prisão, em foto de 1964. Mandela também foi submetido a isso (Foto: The
Daily Telegraph)
Naquela época, final dos anos 60 e início dos 70, pensar semelhante
coisa era um exercício mental distante da realidade. A brutalidade
irracional com que a maioria negra era reprimida e os esporádicos atos
terroristas com que os resistentes respondiam à violência do Estado
haviam criado um clima de rancor e ódio que fazia prever, mais cedo ou
mais tarde, um desenlace de dimensões cataclísmicas no país.
A liberdade só poderia significar o desaparecimento ou o exílio para a minoria branca, particularmente para os africânders [descendentes de colonos holandeses calvinistas e de outros europeus do mesmo credo estabelecidos nos séculos XVII e XVIII] , os verdadeiros donos do poder.
É espantoso pensar que Mandela, perfeitamente consciente das
vertiginosas dificuldades que encontraria no caminho que traçara para
si, decidiria empreendê-lo, e, mais ainda, que perseveraria nele sem
sucumbir ao desalento um só instante, e, 27 anos mais tarde,
concretizaria aquele sonho impossível: uma transição pacífica do
apartheid para a liberdade, enquanto a maior parte da comunidade branca
permanecia no país ao lado dos milhões de negros e mulatos sul-africanos
que, convencidos por seu exemplo e suas razões, haviam esquecido os
insultos e os crimes do passado, e perdoado.
Seria preciso recorrer à Bíblia, àquelas histórias exemplares do
catecismo que nos contavam quando éramos crianças, para tentar entender o
poder de convicção, a paciência, a vontade inquebrantável e o heroismo
que Nelson Mandela deve ter demonstrado durante todos aqueles anos para
persuadir, primeiramente seus próprios companheiros de Robben Island,
depois seus correligionários do Congresso Nacional Africano e, por
último, os próprios governantes e a minoria branca, de que não era
impossível que a razão substituísse o medo e o preconceito, que uma
transição sem violência era igualmente factível e ela assentaria as
bases de uma convivência humana em lugar do sistema cruel e
discriminatório imposto à África do Sul por séculos.
Creio que Nelson Mandela é ainda mais digno de reconhecimento por
esse trabalho extremamente lento, hercúleo, interminável, graças ao qual
suas ideias e convicções foram contagiando os seus compatriotas como um
todo, do que pelos extraordinários serviços que prestaria depois, já no
governo, aos seus concidadãos e à cultura democrática.
Formação
É preciso lembrar que o homem que assumiu essa admirável tarefa era
um prisioneiro político, o qual, até o ano de 1973, quando foram
abrandadas as condições carcerárias em Robben Island, vivia praticamente
confinado numa minúscula cela e com apenas uns poucos minutos diários
para trocar algumas palavras com os outros presos, quase privado de toda
comunicação com o mundo exterior.
Contudo, sua tenacidade e sua paciência tornaram possível o impossível.
Mandela com o então presidente de minoria branca Frederik W. De Clerk,
logo após sua libertação da prisão, em 1990. Num gesto de conciliação e
grandeza do grande líder negro, De Klerk, ex-carcereiro de Mandela,
tornou-se vice-presidente democraticamente eleito em sua chapa (Foto:
Associated Press)
Enquanto na prisão já menos inflexível dos anos 70, pôde estudar e
formar-se em Direito, suas ideias foram rompendo pouco a pouco os
preconceitos totalmente legítimos que existiam entre os negros e mulatos
sul-africanos e começou a ser aceita sua tese de que a luta pacífica na
busca de uma negociação seria mais eficaz e permitiria alcançar a
liberdade mais rapidamente.
Mas foi ainda mais difícil convencer de tudo isso a minoria que detinha o poder e julgava ter o direito divino de exercê-lo com exclusividade e para sempre. Esses eram os pressupostos da filosofia do apartheid proclamada por seu mentor intelectual, o sociólogo Hendrik Verwoerd, na Universidade de Stellenbosch, em 1948, e adotada de modo quase unânime pelos brancos nas eleições daquele mesmo ano.
Como convencê-los de que estavam equivocados, de que deviam renunciar não apenas a semelhantes ideias, mas também ao poder, e resignar-se a viver numa sociedade governada pela maioria negra?
O esforço durou muitos anos, mas, no final, como a gota persistente que fura a pedra, Mandela foi abrindo portas na cidadela de desconfiança e temor, e, um dia, o mundo inteiro descobriu estupefato que o líder do Congresso Nacional Africano saía às vezes de sua prisão para ir tomar civilizadamente o chá das cinco com os que seriam os dois últimos mandatários do apartheid, Botha e De Klerk.
Quando Mandela subiu ao poder, sua popularidade na África do Sul havia se tornado indescritível, tanto na comunidade negra quanto na branca (lembro ter visto, em janeiro de 1998, na Universidade de Stellenbosch, o berço do apartheid, uma parede coberta de fotos de alunos e professores recebendo a visita de Mandela com entusiasmo delirante).
Esse tipo de devoção popular mitológica costuma atordoar quem a recebe e fazer dele – como no caso de Hitler, Stalin, Mao, Fidel Castro – um demagogo e um tirano.
Mas Mandela não se deixou envaidecer; continuou sendo o homem simples, austero e honesto que sempre foi e, para surpresa do mundo todo, negou-se a permanecer no poder, como seus compatriotas pediam.
Aposentou-se e foi passar os seus últimos anos na aldeia indígena de onde se originara sua família.
Mandela é o melhor exemplo que temos – aliás muito raro nos nossos dias – de que a política não é apenas a tarefa suja e medíocre que tantos imaginam, da qual os malandros se valem para enriquecer e os vagabundos para sobreviver sem fazer nada, mas uma atividade que pode também melhorar a vida, substituir o fanatismo pela tolerância, o ódio pela solidariedade, a injustiça pela justiça, o egoísmo pelo bem comum, e que alguns políticos, como o estadista sul-africano, tornam o seu país, e o mundo, muito melhor do que como o encontraram.
Fonte Veja: link
Mas foi ainda mais difícil convencer de tudo isso a minoria que detinha o poder e julgava ter o direito divino de exercê-lo com exclusividade e para sempre. Esses eram os pressupostos da filosofia do apartheid proclamada por seu mentor intelectual, o sociólogo Hendrik Verwoerd, na Universidade de Stellenbosch, em 1948, e adotada de modo quase unânime pelos brancos nas eleições daquele mesmo ano.
Como convencê-los de que estavam equivocados, de que deviam renunciar não apenas a semelhantes ideias, mas também ao poder, e resignar-se a viver numa sociedade governada pela maioria negra?
O esforço durou muitos anos, mas, no final, como a gota persistente que fura a pedra, Mandela foi abrindo portas na cidadela de desconfiança e temor, e, um dia, o mundo inteiro descobriu estupefato que o líder do Congresso Nacional Africano saía às vezes de sua prisão para ir tomar civilizadamente o chá das cinco com os que seriam os dois últimos mandatários do apartheid, Botha e De Klerk.
Quando Mandela subiu ao poder, sua popularidade na África do Sul havia se tornado indescritível, tanto na comunidade negra quanto na branca (lembro ter visto, em janeiro de 1998, na Universidade de Stellenbosch, o berço do apartheid, uma parede coberta de fotos de alunos e professores recebendo a visita de Mandela com entusiasmo delirante).
Esse tipo de devoção popular mitológica costuma atordoar quem a recebe e fazer dele – como no caso de Hitler, Stalin, Mao, Fidel Castro – um demagogo e um tirano.
Mas Mandela não se deixou envaidecer; continuou sendo o homem simples, austero e honesto que sempre foi e, para surpresa do mundo todo, negou-se a permanecer no poder, como seus compatriotas pediam.
Aposentou-se e foi passar os seus últimos anos na aldeia indígena de onde se originara sua família.
Mandela é o melhor exemplo que temos – aliás muito raro nos nossos dias – de que a política não é apenas a tarefa suja e medíocre que tantos imaginam, da qual os malandros se valem para enriquecer e os vagabundos para sobreviver sem fazer nada, mas uma atividade que pode também melhorar a vida, substituir o fanatismo pela tolerância, o ódio pela solidariedade, a injustiça pela justiça, o egoísmo pelo bem comum, e que alguns políticos, como o estadista sul-africano, tornam o seu país, e o mundo, muito melhor do que como o encontraram.
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